{ "@context": "http://schema.org", "@type": "Article", "mainEntityOfPage": { "@type": "WebPage", "@id": "https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/valdo-resende/niede-guidon-alem-da-arqueologia-um-legado-para-humanidade.phtml" }, "headline": "Niède Guidon: Além da arqueologia, um legado para a humanidade", "url": "https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/valdo-resende/niede-guidon-alem-da-arqueologia-um-legado-para-humanidade.phtml", "image": [ { "@type":"ImageObject", "url":"https://image.staticox.com/?url=https%3A%2F%2Faventurasnahistoria.com.br%2Fmedia%2Fs%2F2025%2F06%2Fwhatsapp-image-2025-06-09-at-145957.jpeg", "width":"1280", "height":"720" } ], "dateCreated": "2025-06-09T17:30:00-03:00", "datePublished": "2025-06-09T17:30:00-03:00", "dateModified": "2025-06-09T17:30:00-03:00", "author": { "@type": "Person", "name": "Valdo Resende*" }, "publisher": { "@type": "Organization", "name": "Aventuras na História", "logo": { "@type": "ImageObject", "url": "https://aventurasnahistoria.com.br/static/logo/ah.svg", "width":"120", "height":"60" } }, "articleSection": ["Colunas", "Valdo Resende"], "description": "Falecida recentemente, a mulher que revolucionou a pesquisa pré\u002Dhistórica brasileira também nos deixou fatos saborosos, lembrados neste texto" }
Falecida recentemente, a mulher que revolucionou a pesquisa pré-histórica brasileira também nos deixou fatos saborosos, lembrados neste texto
Em 1992, convidados pelo Instituto de Artes da UNESP, Cristiane Buco — atualmente Superintendente Estadual do IPHAN no Ceará e realiza importantes trabalhos na área da preservação histórica do estado — e eu recebemos a missão de elaborar um diagnóstico sobre São Raimundo Nonato e, em especial, o Parque Nacional da Serra da Capivara.
A universidade atendia convite da arqueóloga diretora das pesquisas que se realizavam por lá para ver a possibilidade de um projeto em comum. Foi quando tivemos o primeiro contato com Niède Guidon, falecida nesse 4 de junho, aos 92 anos de idade.
Saímos de São Paulo rumo a Petrolina, em Pernambuco, pois São Raimundo ainda não tinha aeroporto. De lá, após longas horas de viagem chegamos à cidade e não demorou para que fossemos recebidos pela Doutora, que é como todos chamavam Niède. Começava a se concretizar naquele encontro o projeto Arte e Educação pela Arte. Elegante, educada, a arqueóloga nos recebeu com bom papo, bom vinho e grandes sonhos.
Cristiane Buco vinha de uma sólida formação musical e eu, nos dois anos anteriores, concluíra uma profunda experiência teatral com Antunes Filho. Por isso a faculdade nos enviou, pois a Doutora sonhava em ter um "Coral como o dos Pequenos Cantores de Viena e um grupo de teatro assim, como o Grupo Pau Brasil de Antunes Filho".
Niède buscava formas para que o Parque da Capivara se tornasse autossustentável e, coerente com os registros visuais pré-históricos, isso deveria vir através da arte.
No dia seguinte fizemos nossa primeira visita aos sítios arqueológicos. Onze! O calor da caatinga, as pegadas de cobra, os insetos em busca de alimento e, sobretudo, as milenares pinturas deixadas pelos primeiros habitantes do que viria a ser o Brasil.
Ao voltarmos no final da tarde uma surpresa desagradável. A energia elétrica tinha ido embora. Quando Cris Buco perguntou ao rapaz do hotel se ele havia telefonado para a empresa responsável, ouviu como resposta: "daqui a pouco o telefone cai!". E caiu.
Do hotel voltamos à Fundação Museu do Homem Americano (o belo museu de hoje era um projeto), para encontrar Niède e ver o que era possível fazer. Imagine a cena: No quintal havia uma enorme coluna sustentando uma caixa d’água. Nos últimos degraus de uma escada de madeira estava Niède Guidon despejando água sanitária no reservatório enquanto praguejava em altos brados.
Fui até a empresa de energia elétrica para saber se o responsável já havia tomado providências e ele saiu para comprar uma lamparina! Dá vontade de pegar meu trator e derrubar aquilo tudo!".
Naquele 1992, Niède estava próxima de comemorar 30 anos de trabalho na região. A caatinga é para os muito fortes. E garantir a permanência de um legado pré-histórico é para pessoas obstinadas.
O Parque Nacional da Serra da Capivara tem cerca de 130 mil hectares e nesses estão centenas de sítios com pinturas rupestres. Tarefa gigantesca é garantir a preservação de todo o parque. Niède, no trato uma pessoa sensata, sabia ser dura quando necessário, com todas as possibilidades de acertos e erros ao longo de uma trajetória em que a política cultural dança conforme governos vigentes.
Dias depois voltávamos de uma outra expedição por outro setor do parque quando a Doutora parou ao ver uma senhora carregando uma criança já grandinha no colo. Faltavam cerca de 60 quilômetros para chegar à cidade.
A mulher carregava o filho doente para o hospital. "Venha, te levo" e, dirigindo-se a nós, "aqui todo mundo dá carona". A estrada pouquíssimo movimentada, a mãe determinada poderia fazer o longo percurso a pé.
No sábado seguinte, em condições similares, encontramos dois rapazes. Estavam indo para o forró de final de semana.
Terminada a primeira visita ao Piauí, tempos depois Cristiane retornou e ficou por lá por um bom tempo. Em seguida, Vânia Lourenço Sanches foi colaborar com o trabalho que se transformou e cresceu.
O parque veio a ter seis escolas funcionando em período integral. Voltei outras vezes em São Raimundo Nonato, quando tive um encontro hilário com Niède Guidon.
Vânia tinha dado à luz a Antônio, do qual tenho a honra de ser padrinho. Fui até lá para o batizado e, na véspera, saí para ear com minha comadre. Lá pelos arredores da cidade, em uma estrada difícil, nos deparamos com uma poça de água, um lodaçal de chuva recente e rara na caatinga.
Impossível prosseguir sem atravessá-la. Chegados a uma aventura, encaramos a tarefa, mas já deixando claro um ao outro que, caso o veículo — uma velha Kombi — atolasse, estaríamos presos e encrencados. Atolamos.
Já estávamos próximos do final da tarde, rindo e ao mesmo tempo tensos, pois o atoleiro nos ameaçava algumas mazelas e a noite se aproximava. Um garoto ou por nós, de bicicleta. "Peça socorro, por favor!".
A solidariedade local é imensa. Logo vimos um jipe se aproximando e minha comadre segurando o riso. "É a Niède, compadre". O veículo da doutora tinha tração nas quatro rodas, mas não um cabo para puxar o atolado. Sem pestanejar, uma das arqueólogas mais importantes do mundo entrou com o jipe no lodaçal, encostou-o ao lado da perua em que estávamos e, calçada com botas de cano longo entrou na poça e ajudou-nos a atravessar, limpos e seguros, para em seguida deixar-nos em casa, secos e salvos.
Niède revolucionou a arqueologia brasileira e colocou o país no mapa das pesquisas mundiais em pré-história. Era uma mulher! Instigante, determinada. Uma estudiosa ímpar! Com esses fatos me despeço da Niède, que não deixou nem um coro, ou um grupo de teatro, mas todo um parque e uma pesquisa com uma incalculável riqueza histórica. E boas lembranças! Que descanse em paz.
*Valdo Resende é mestre em artes visuais e escritor. Autor do romance “dois meninos – limbo” e de “O vai e vem da memória”, coletânea de crônicas, contos e poesia.